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A Maria tem três anos e adora a palavra "não". Gosta de dizê-la - com dedinho indicador a abanar e cabeça a acompanhar o compasso - em relação à sesta da tarde, à arrumação dos brinquedos, à hora de ir dormir, à escuridão do quarto, aos sapatos que não são ténis, à roupa que não tem a "Hello Kitty", à comida que não é massa, ao brinquedo que não seja plasticina, ao canal de televisão que não seja o Panda, ao DVD que não tenha o Ruca, à rua onde não exista um parque. A resposta pronta e negativa só muda para sim, se a mãe disser não. Porque na boca da mamã a palavra perde a graça, limita-lhe as vontades ilimitadas, traça fronteiras entre o possível que ela não quer e o impossível que deseja, gere-lhe o comportamento infantil. "Impor barreiras dói, negar algo custa, mas é uma forma de amar. É uma prenda que se dá aos filhos e que lhes assegura uma entrada firme no mundo real", explicou ao Expresso a psicoterapeuta infantil Asha Phillips, autora de "Um Bom Pai Diz Não", um livro best-seller mundial lançado agora em Portugal.
Confessa a mãe da Maria que dizer não nem é uma tarefa hercúlea, o pior mesmo é mantê-lo. Porque a seguir às três letrinhas vem logo a tristeza chantageante da petiz, ou a insistência repetida à exaustão que leva ao limite a paciência de qualquer adulto, ou a vergonha que sobe vermelha ao rosto materno quando a birra se esparrama no chão do supermercado. "Os pais modernos têm muita dificuldade em dizer não aos filhos e essa permissividade tem consequências terríveis. Estão a criar pequenos tiranos, que não sabem reagir a adversidades porque nunca foram contrariados. Ou então criam crianças medricas, absolutamente dependentes, que não sabem fazer nada sozinhas."
Já a imaginar a Maria no seu pedestal de ditadora, ou com 40 anos e grudada que nem lapa à casa dos pais, a mãe vai procurar socorro e soluções no livro de Asha. O título é duplamente apelativo (ainda que faça torcer o nariz quanto à tirada lógica de que é mau pai aquele que diz sim). Não há pai que não deseje ser perfeito e ponho as duas mãozinhas no lume se algum tem certezas absolutas sobre os limites que deve impor aos filhos para atingir essa plenitude parental. Pode dormir de luz acesa? E na cama dos pais? Quantas horas de televisão? Pode escolher o que vai comer? E o que vai vestir? O que fazer perante uma birra? Quando se pode dizer sim? E quando se deve começar a dizer não? E quando é tarde de mais para começar a traçar limites?
A psicoterapeuta britânica conhece cada uma das dúvidas de cor, ri-se sempre quando se sente como o manual de instruções onde os pais querem encontrar soluções concretas. "Não há uma resposta única nem o meu livro é de receitas", diz com um sorriso aberto. Mas reconhece-se nestas dúvidas. Ela também é mãe, de duas raparigas agora já adultas, e foi a sua enorme dificuldade em contrariá-las que a levou a procurar literatura de ajuda. Como não encontrou, escreveu ela o livro - a primeira edição é de 1999 -, dividido por conselhos para bebés, crianças dos dois aos cinco anos, os anos da escola primária e os adolescentes.
"Os limites devem começar a ser colocados quando ainda andam ao colo. É geralmente nessa altura que dizemos pela primeira vez sim quando devíamos ter dito não". Para Asha, os erros cometidos pelos pais nesta fase prendem-se com a ansiedade de tudo quererem fazer e sempre bem. Ao mínimo ruído do bebé, a mãe entra no quarto. Mal abre os olhos pega-lhe. Mal ouve um choro dá-lhe de comer. A chucha cai e a mãe apanha. O bebé quer colo e a mãe dá. "Os pais querem o seu bebé sempre a sorrir, fazem-lhe todas as vontades, dizem que sim a tudo e ele consegue tudo sem esforço. Nem lhe dão a possibilidade de descobrir o que consegue fazer sozinho".
O medo dos pais de errar é grande, mas em vez de transmitirem segurança asfixiam o desenvolvimento da sua independência e criam crianças infelizes e inadaptadas. "Às vezes acertamos, outra não. É normal. Não existem pais ou mães perfeitos, não se espera que acertemos sempre. Aliás, o encaixe perfeito - uma mãe que poupa o filho a todo e qualquer tipo de irritação - não é benéfico. A recuperação de um desencontro promove o desenvolvimento, e é certo que serão sempre mais as vezes em que as necessidades do bebé são satisfeitas do que o inverso."
Dizer não a um bebé é não ir a correr para o quarto quando ele choraminga, é deixá-lo encontrar a chucha sozinho, é permitir que ele descubra uma fonte de conforto alternativa à mãe ou ao pai (o polegar, por exemplo). Dizer não é não deixar a luz do quarto acesa ou não mergulhar a casa num silêncio sepulcral, para que o bebé cresça no mundo real. "Nesta fase, o estabelecimento de limites surge não tanto como uma restrição mas mais como uma porta aberta à criatividade".
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No segundo capítulo do manual, Asha Phillips fala das crianças dos dois aos cinco anos, que vivem tudo com paixão e emoções extremadas. "É o período mais desafiante. Acham que podem fazer tudo. Conseguem andar, falar e odeiam ser tratados como bebés", explica a psicoterapeuta. A mãe de Maria parece que está a ler uma descrição da filha "Eu já sou grande" (dita em bicos de pés). "Eu faço", "Eu consigo" são as frases mais repetidas pela menina de três anos. "Por um lado isso é maravilhoso e deve ser encorajado, mas os pais também têm de lhes lembrar que não podem fazer tudo, de uma forma que não esmague o seu empreendorismo, a sua paixão pela descoberta", explica Asha. Os principais limites devem ser impostos por estes anos. Com firmeza e consistência. De nada vale uma nega pouco convicta; a criança reverte-a em três tempos. E um sim excepcional nunca mais voltará a ser aceite como não.
Na vida normal de uma casa onde existe uma criança pequena, impulsiva, activa, exigente, curiosa, o não pode muito bem passar a ser a palavra mais usada - na casa da Maria é, garantidamente. Mas o adulto que a diz tem de acreditar que está a fazer o que está certo. "Se as respostas ao seu comportamento forem consistentes, a criança adquire uma boa ideia do que é permitido e do que é proibido, do que é seguro e perigoso."
Quando a criança rejeita relutantemente o não, Asha Phillips recomenda o recurso ao castigo ou mesmo uma "leve palmada ocasional" para deter uma escalada de conflito. "Não é o castigo em si que importa, mas aquilo que o seu comportamento transmite. Não é preciso uma marreta para partir uma noz". O excesso de autoridade tem, em geral, o efeito oposto ao desejado. O mesmo é verdade em relação a perder a calma, humilhar a criança e entrar numa batalha de vontades. "Mas se alguma vez um pai perder a cabeça e disser ou fizer algo de que se arrepende, não é o fim do mundo. Isso pode ajudar a criança a perceber que o pai ou a mãe também são humanos." A mãe, humana, de Maria suspira de alívio. Asha Phillips absolveu-a.
Mais importante do que dizer não, é mantê-lo (entrevista)
Alberto Frias
Asha Phillips explicou ao Expresso como a sociedade actual, de mães trabalhadoras, sem nenhum tempo e com muito sentimento de culpa, e o aumento das famílias monoparentais, estão a estimular a permissividade parental.
Porque é tão difícil dizer não?
Ao negarmos algo, ao contrariarmos uma vontade, somos impopulares e geramos conflitos. E fugimos disso. É uma herança do pós-guerra. As pessoas passaram a achar que tudo o que era rígido era fascista. Nós, os pais que viveram o flower power, tornámo-nos tão contra tudo isso que começámos a fazer o oposto. O legado negativo dos anos 60 foi deseducar. Essa geração educou outra que cresceu desamparada, com demasiada liberdade. A estrutura actual de família, com pai e mãe a trabalhar, ou mesmo monoparental, não facilita a tarefa. Há uma enorme culpa, por parte das mães que trabalham, e que sentem que não se dedicam a tempo inteiro aos filhos. O facto de terem de os deixar faz com que pensem não estar a cumprir bem o seu papel. E como a maioria das mulheres ainda tem a exclusividade das tarefas domésticas mal chega a casa... E diz-se sim para compensar os filhos e para amainar a culpa...Não queremos discussões porque tivemos saudades deles o dia todo, queremos que nos achem amorosas. E por isso não dizemos "Chega de televisão" ou "Está na hora de ir para a cama".
Quando é que é demasiado tarde para se começar a ditar limites?
Nunca. Só que quanto mais tarde mais difícil. O ideal é começar quando os filhos são bebés. Chegar à idade escolar sem regras, por exemplo, pode ser muito complicado. A forma como os miúdos reagem ao "não" tem um enorme impacto na sua capacidade de se adaptarem, fazerem amigos e aprenderem na escola. Tentar impor regras a um adolescente que nunca as teve é quase uma impossibilidade.
Há erros práticos que se devem evitar?
O maior é os pais quererem ser perfeitos. Por exemplo, com os bebés: custa-lhes ouvi-los chorar e por isso correm até eles ao mínimo ruído. Mas várias investigações recentes deixam-me descansada como mãe: concluíram que é bom não acertar sempre, que o ajuste perfeito não é benéfico. O que é bom para o desenvolvimento é existirem acertos, erros e reparos. E isso é que é a vida real. Todos os pais querem ser perfeitos. Mas isso é o que interessa aos pais. Não o que interessa ao filho.
Os filhos podem tomar decisões?
Claro que deixá-los decidir, de vez em quando, dá-lhes independência, iniciativa, criatividade. É maravilhoso ver o seu entusiasmo e energia. Mas não é benéfico dar-lhes demasiada escolha, porque depois torna-se uma responsabilidade deles e isso é de mais quando se é criança.
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Podem, por exemplo, opinar sobre o que vão comer?
Ui. Não sei como é em Portugal, mas em Inglaterra a hora da refeição tornou-se terrível. Imagine-se que se tem três crianças, e uma quer comer massa, outra carne e a outra é vegetariana, e a mãe cozinha três refeições diferentes. Isso é de loucos. Deve-se dizer: "Esta é a refeição hoje, eu sou tua mãe e sei o que é bom para ti e por isso é isto que vamos comer." Se não quer, paciência. Porque se a nossa criança quer massa todos os dias e nós satisfazemos esse capricho, então quando vamos comer a casa de amigos ou na escola eles não vão querer comer porque não é massa. E aí a mãe tem um grande problema. É tudo uma questão de flexibilidade e de os pais fazerem o seu filho sentir que ele se consegue adaptar às coisas do mundo e que não é sempre o mundo que se adapta a ele.
E dormir na cama dos pais, é proibido?
Não há um não ou um sim claro. Se a criança dorme bem, se os pais dormem bem não há problema. Mas se isso é feito mais pelos pais do que pelas crianças, se é o pai que precisa de conforto, então está errado.
E o que fazer durante as birras no supermercado, com as crianças que esperneiam no chão?
Mais uma vez, não há uma regra mágica. Se acha que já está há demasiado tempo no shopping e que a criança está cansada, então a culpa é dos pais e é altura de ir para casa. Se, por outro lado, passam o tempo todo "eu quero, eu quero", é muito importante não ceder. E se a criança se atira para o chão, que isso não afecte os pais porque é quando nos preocupamos com o que os outros comentam que se tomam decisões erradas. Podemos deixá-la espernear por 5 ou 10 minutos, esperar que acabe e continuar o que se estava a fazer. Regras dão-lhes estrutura, um objectivo e, depois, o sentimento de vitória quando o alcançarem.
Mas como podem os pais saber quando devem dizer sim ou dizer não?
É muito difícil. O livro não encerra nenhuma fórmula secreta, porque ela simplesmente não existe. É importante não dizer sempre não, porque seria ridículo, temos que escolher os nossos 'nãos' com muito cuidado, os verdadeiramente importantes. E quando os escolhemos temos que os segurar, não ceder. O que realmente não é bom para as crianças é dizer não, não, não e depois dizer sim. Porque assim nunca saberão quais são os limites. E uma criança usará os nossos argumentos, a nossa linguagem, e vai lembrar-se sempre daquela vez em que dissemos sim - "Se naquele dia deixaste porque não deixas hoje?" São muito lógicos e encostam-nos a um canto com os seus argumentos.
Há alguma altura do dia mais propícia para a transmissão dessas regras?
Se está a tentar impor limites comece nas alturas fáceis do dia - nunca de manhã quando se corre para a escola e para o emprego.
Asha Phillips, psicoterapeuta infantil, 55 anos, escreveu a primeira versão do livro em 1999. Um caso perdido na arte de dizer não às duas filhas, procurou livros que a ajudassem. Como não encontrou, escreveu ela a obra, com base nos casos que tratou na Tavistock Clinic. "Acredite se quiser: ainda hoje o consulto". Viveu os anos 60 em paris - encontra aí a fonte da sua permissividade - e parte da vida na índia. Actualmente, exerce a nível particular, atendendo crianças, famílias e casais, em Londres. Na semana passada esteve em Lisboa para apresentar a versão portuguesa de "Saying No". A tradução "Um Bom Pai Diz Não" (Editora Lua de Papel) não a satisfaz plenamente - "encerra um certo juízo de valor" -, mas adora o acrescento no canto inferior direito da capa: "impor limites é uma forma de amar".
Texto publicado na edição do Expresso de 25 de Julho de 2009
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